Felipe Curcio | 14 de novembro de 2017

Cine Mulher | O cinema não pode ser desculpa para abusadores

Quando ressurgiu a acusações de que Woody Allen teria abusado de sua enteada Dylan Farrow lá nos ditos 2014 (longínqua época em que ser um assediador não rendia nem um rubor de vergonha por parte dos acusados): é possível separar a obra e a vida de quem a criou? Agora, à luz das muitas e […]

Quando ressurgiu a acusações de que Woody Allen teria abusado de sua enteada Dylan Farrow lá nos ditos 2014 (longínqua época em que ser um assediador não rendia nem um rubor de vergonha por parte dos acusados): é possível separar a obra e a vida de quem a criou? Agora, à luz das muitas e muitas e muitas histórias de mulheres (e homens) que passaram por situações de assédio sexual nas mãos de diretores e produtores poderosos de Hollywood, a questão que fica é: até que ponto o amor pelas obras nos consegue tornar invisíveis à dor alheia? Ou melhor, em que momento o “bom gosto” significa atropelar o bom senso?

woody-allen

‘Então quer dizer que eu vou ter que deixar de gostar dos filmes do Woody Allen?’ pergunta, preocupado, o cinéfilo “de carteirinha” enquanto toma um café em um dos cinemas cult do circuito da Paulista e da Augusta, muito provavelmente ostentando uma camiseta de algum filme – senão do próprio diretor. Não exatamente, mas seria bom começar a questionar o cânone e escolher os tipos de filme para qual damos nossa atenção e para qual reservamos a nossa devoção.

Será que vale mesmo a pena ver aquele filme do diretor renomado, mas que foi feito as custos da saúde mental das atrizes principais? Será que vale mesmo a pena pagar para ir ao cinema para ver um filme de um diretor que constantemente diminui uma das atrizes por ela ser lésbica? Será que vale mesmo a pena reassistir a séries com um ator que abusou de garotos adolescentes?

Será que vale mesmo a pena comprar a pré-estreia daquela saga que você ama quando ela conta com um ator principal que foi filmado batendo na própria mulher?

Será que vale a pena assistir a um filme mesmo sabendo que, nele, não há uma mulher como parte do corpo diretor e produtor? Será que vale a mesmo a pena colecionar camisetas temáticas e idolatrar um diretor que abusou de uma menor de idade, que foi obrigada a mudar de país? Será que vale mesmo a pena colocar aquele filme na sua lista de preferidos sabendo que as mulheres que trabalharam nele foram obrigadas a transar ou masturbar o produtor?

Para mim, a resposta é simples e clara: nada disso vale à pena. Porque, amigo cinéfilo, não adianta se você é sensível aos diálogos e imagens comovente dos filmes, enquanto ignora ou finge que escuta as histórias reais contadas por mulheres abusadas. Está na hora do espectador perceber o poder que tem como o membro-alvo da indústria do cinema.

Não podemos agir como se fossemos uma parte desimportante indústria só para poder fingir que não há problema se consumirmos filmes e séries criados, produzidos, dirigidos e atuados por abusadores. Há problema sim, que mexe diretamente com a nossa ética, um problema que nenhuma qualidade de obra vai conseguir ser maior, porque quando a gente dá audiência para estes filmes, a gente financia – mesmo que indiretamente – os abusadores. Isso incomoda? Que bom, porque deve incomodar. É só assim que alguma mudança estrutural vai acontecer.