Bruno Martuci | 14 de fevereiro de 2017

Um Limite Entre Nós

[img src=”http://saladadecinema.com.br/wp-content/uploads/2017/02/viola.png”] Quando August Wilson escreveu a peça Cercas – intitulado Um Limite Entre Nós no Brasil – em 1983, sua principal influência para criar uma história convincente e envolvente o suficiente veio principalmente das disputas de jazz que ocorriam entre músicos profissionais nos anos 1920, e de um estilo em particular: a improvisação. Logo, […]

[img src=”http://saladadecinema.com.br/wp-content/uploads/2017/02/viola.png”]

Quando August Wilson escreveu a peça Cercas – intitulado Um Limite Entre Nós no Brasil – em 1983, sua principal influência para criar uma história convincente e envolvente o suficiente veio principalmente das disputas de jazz que ocorriam entre músicos profissionais nos anos 1920, e de um estilo em particular: a improvisação. Logo, para retratar a vida de uma família afrodescendente tentando sobreviver no subúrbio estadunidense pós II Guerra Mundial, os diálogos, a concepção de cena e as próprias metáforas deveriam se restringir à estética naturalista ao mesmo tempo em que não poderiam se manter dentro de uma narrativa familiar comum.

O resultado não poderia ter sido outro: a peça levou para casa o Prêmio Pulitzer no ano de lançamento e, quando foi encenada pela primeira vez em 1987 nos palcos da Broadway, faturou o Tony Award de Melhor Drama. Desde seu grande sucesso de crítica e de público, uma adaptação para os cinemas sempre esteve à vista das grandes produtoras, mas nunca conseguiu encontrar espaço devido ao pedido pessoal de Wilson de que o diretor fosse negro e representasse a cultura que ele com tanto esmero descreveu em sua obra. Só foi em 2010, cinco anos depois de sua morte, que Denzel Washington realizou um revival da peça e então decidiu levar a história para as telonas.

O filme é ambientado na década de 1950, na cidade de Pittsburgh, e traz como protagonistas Troy Maxson (Washington) e sua família, formada pela atual esposa, Rose (Viola Davis), seu primeiro filho de outro casamento, Lyons (Russell Hornsby), seu outro filho, Cory (Jovan Adepo) e seu irmão Gabriel (Mykelti Williamson). A história é relativamente simples, composta de três atos fundidos ao longo de seus 138 minutos e focando na ascensão e decadência de um ex-jogador de basebol que tenta lidar com seu presente enquanto assombrado pelos fantasmas de um passado de glória. O grande mérito, entretanto, reside nas metáforas existenciais que estão por trás de cada fala.

Primeiramente, a backstory de cada um dos personagens importa muito aqui, talvez mais do que a maioria dos filmes contemporâneos. Troy, como supracitado, foi um sucesso no mundo dos esportes até enfrentar dificuldades que o levaram a perder tudo, a abandonar a família com apenas dezoito anos e preocupar-se com assuntos próprios do mundo adulto, cuja extenuação o fizeram enterrar ressentimentos e traumas no mais profundo de seu subconsciente. A primeira cena se abre já com este tom: o protagonista é essencialmente verborrágico, e seu sotaque do gueto é carregado com uma sociabilidade identitária que funciona como escudo e que fornece um efêmero semblante de paz e tranquilidade, tudo em contraposição à dura vida que leva como catador de lixo ao lado de seu melhor amigo, Jim (Stephen McKinley Henderson).

Logo após finalizarem um dia de trabalho, os dois atravessam as ruas movimentadas de seu bairro, chegando a uma casa que, de algum modo, sobressai-se em termos estilísticos das construções adjacentes; eles atravessam um beco escuro para chegarem à parte de trás da casa, aos moldes de A Divina Comédia – Inferno e com uma grande referência pessimista que anuncia “abandonai todas as esperanças”. As coisas podem até parecer apáticas no começo, mas de algum modo sabemos que os ânimos irão se exaltar até um clímax derradeiro.

Não posso negar que o primeiro ato do filme entra como uma explanação sobre o passado conturbado dos personagens e como cada um se relaciona com o outro. A primeira a aparecer é Rose, cujo âmago foi incorporado de forma tão precisa por Davis que por vezes nos esquecemos de que tudo não passa de atuação. Ela até abandona alguns vícios de linguagem próprias do teatro para transmitir algo mais naturalista e quase primitivo, além de já nos fornecer o tom de suas aparições: seu nome esconde uma forte personalidade superprotetora que prefere ficar ao lado do filho, ainda que nutra um sentimento de companheirismo inefável pelo marido.

Sua relação com Lyons e com Cory é um pouco mais conturbada, como já é de esperar. Enquanto Troy carrega valores tradicionalistas e alimenta um sentimento de angústia provindo do fato de não ter conseguido sucesso no mundo de esporte, está em constante conflito com as aspirações de seus garotos: enquanto este deseja ser um jogador de futebol americano, podendo ofuscar o passado outrora brilhante do patriarca da família, aquele quer ser um músico, um boêmio esperançoso que emerge como o arquétipo da esperança pós-Guerra. E quando questionado sobre as atitudes repreensivas, Troy vale-se de argumentos hierárquicos, financeiros e moralistas para “botar ordem” na casa. Ele não está certo; mas não admite estar errado em nenhum momento.

O modo de agir do protagonista é baseado no paradoxo. Troy é o típico pai de família cuja formação não busca a aceitação de outros, ou seja, o que ele diz é lei; entretanto, por ter sido renegado por uma família que não acreditava em seu potencial, está em constante aprovação e reafirmação de seus argumentos, buscando a concordância em qualquer um ao seu lado – seja a esposa, o melhor amigo ou até um vizinho. E todos os seus diálogos corridos são carregados de epifanias metafísicas metaforizadas com associações ao basebol.

O clímax de Um Limite Entre Nós não poderia ser desenvolvido de outro modo: em primeiro plano, temos a sensação de que Troy e Rose são um casal feliz, ainda que dentro de um círculo de miséria e racismo próprio da época. Mas, no final do segundo ato, Davis parece libertar todos os seus demônios em cima de Washington, gritando enquanto chora compulsivamente sobre como ela desperdiçou dezoito anos de sua vida ao lado dele para se ver num círculo de traição e numa mentira conjugal. Aqui as coisas ficam ainda mais claras: o protagonista nunca realmente pensou em mais ninguém além de si mesmo; a construção da cerca ao lado da casa só se sucedeu para reafirmar a bolha que envolve a família, criando um microuniverso à parte que impede a libertação dos envolvidos.

Como já explicado, o ponto forte do filme é seu roteiro. A direção, também a cargo de Washington, deixa a desejar no quesito originalidade: o ator provém do teatro, e a história é necessariamente intimista. Para tanto, construções muito elaboradas e carregadas de ambiguidades não existem em Cercas. O diretor opta pelo modesto e simples jogo de plano e contraplano, com angulações e enquadramentos introspectivos. A partir da metade do filme, essa previsibilidade construtiva é ofuscada por um ritmo interessante e dinâmico.

Outro ponto a ser analisado aqui é a direção de arte do filme. A paleta de cores foi escolhida cuidadosamente para representar as características do subúrbio de Pittsburgh da década de 1950, optando por cores frias e neutras, como o marrom e o cinza, pincelados com alguns tons mais lilases que contribuem para a atmosfera de apatia. Além disso, a fotografia também auxilia a dissociação de personagens: Rose, Cory e Lyons seguem um estilo de contraposição, todos banhados por uma luz dura que delineia suas figuras do cenário, enquanto Troy parece fundir-se às paredes de sua casa, mostrando que ele já não pode abandonar seu passado.

A contraposição está presente também em cenas interiores: em determinada sequência, os personagens estão discutindo sobre finanças dentro de uma sala de estar com paredes azuis, cor a qual se relaciona diretamente com a profusão de estabilidade. Entretanto, as relações familiares já se mostram abaladas e conflituosas, prevendo uma possível ruptura. Em outro momento, Troy e Rose conversam sobre um outro parente, Gabriel, um veterano de guerra flagelado e mentalmente desequilibrado. Ambos estão num cenário branco e mais uma vez vemos a dualidade entre paz e caos tomar conta da narrativa.

Um Limite Entre Nós entrega exatamente o que promete. O longa, apesar de seus claros defeitos, não deixa a desejar no quesito competência e emoção, mas já aviso que ele não agradará a todos – assim como não será entendido por todos. Entretanto, sua densa narrativa é uma ótima metáfora para a nossa sociedade e o modo como os relacionamentos se constroem ao longo do tempo.

Assista ao trailer de ‘Um Limite Entre Nós’:

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