Fernando Campos | 27 de maio de 2016

Dente Canino

[img src=”http://saladadecinema.com.br/wp-content/uploads/2016/05/jfo8xyfyrttpmravky1o7kqwcq8.jpg”] “Um cão é como barro. Nosso trabalho aqui é moldá-lo. Um cão pode ser dinâmico, agressivo, um lutador, covarde ou afetivo. E isso requer trabalho, paciência e atenção nossa. Todo cachorro espera de nós que ensinemos como se comportar. Entende? Nós, nós estamos aqui para determinar que comportamento o cachorro deve ter. Você […]

[img src=”http://saladadecinema.com.br/wp-content/uploads/2016/05/jfo8xyfyrttpmravky1o7kqwcq8.jpg”]

“Um cão é como barro. Nosso trabalho aqui é moldá-lo. Um cão pode ser dinâmico, agressivo, um lutador, covarde ou afetivo. E isso requer trabalho, paciência e atenção nossa. Todo cachorro espera de nós que ensinemos como se comportar. Entende? Nós, nós estamos aqui para determinar que comportamento o cachorro deve ter. Você quer um animal de estimação, um amigo, uma companhia? Ou um guardião, que respeita seu mestre e obedece às suas ordens? Entende?”

Ao aplicar esse monólogo a um cão, como proposto acima, tudo ok, faz sentido. Mas quando aplicada a um filho – mais do que um filho, um ser humano – percebemos o quão doentio e perturbador isso soa. São justamente essas as características de “Dente Canino” (Kynodontas, 2009). Dirigido por Yorgos Lanthimos, o longa teve destaque no festival Un Certain Regard em Cannes e no Festival de Cinema de Sarajevo, além de ser o quinto filme grego indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2011 (a produção anterior indicada foi “Ifigênia”, de Michael Cacoyannis, 32 anos antes).

Numa luxuosa casa em algum lugar no interior da Grécia, um casal cria seus três filhos – um rapaz (Hristos Passalis), uma irmã mais velha (Aggeliki Papoulia) e a irmã mais nova (Mary Tsoni) – encarcerados dentro da própria casa, sem nenhum contato com o mundo exterior. Muros enormes jamais cruzados, denota e conotativamente. Logo no começo da trama, os três irmãos ouvem atentamente de uma gravação de uma fita cassete significados completamente equivocados de palavras como mar, estrada, excursão e carabina. Palavras que eles consideram prejudiciais à educação dos filhos tem novos significados atribuídos: “xoxota”, por exemplo, passa a significar “uma grande luz”; “zumbis”, flores amarelas.

Entediados, os três filhos se desafiam a participar de competições sem sentido (ficar debaixo da água sem respirar ou deixar o dedo dentro da água quente por mais tempo) sem entre si, muitas vezes intermediadas pela própria mãe, cujo resultado dão a eles pontos para escolher prêmios, como por exemplo escolher que vídeo caseiro (gravados pelo próprio pai) assistir. Sem falar nas traduções que o pai (Christos Stergioglou) faz como bem entende: Fly me to the Moon, de Frank Sinatra, que é apresentado como o avô dos meninos.

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Chocante e engraçado ao mesmo tempo ver adultos se portando como crianças na flor da infância. A lista de absurdos não pára por aí: gatos são apresentados a eles como o animal mais perigoso do mundo, o desejo deles que aviões caiam para que possam colecioná-los e etc. No decorrer do longa, fica claro que a curiosidade vai matar o gato, mais cedo ou mais tarde. Piada intencional e, bizarramente, literal. Ainda assim, a inocência dos personagens é cativante. A cena que o pai chega em casa alegando quase ter morrido nas mãos de um gato, um feroz animal que ataca crianças, é digna de risadas, que rapidamente se cessam com o passar do tempo.

O pai é o único que sai da casa pra suprir as necessidades de toda a família, roupas e alimentos, sem explicar de onde essas coisas vêm, chegando ao ponto de tirar os rótulos de tudo. Ele também é responsável por trazer Christina (Anna Kalaitzidou), segurança da empresa onde trabalha, para satisfazer os desejos sexuais do único filho homem da casa. Mal sabe ele o problema que a moça trará pra dentro de seu branco e imaculado lar, a notar pela fotografia sempre clara, limpa do ambiente.

Hipótese maluca: e se Christina fosse, na verdade, filha do casal? De início, pelo fato da moça ser trazida pra dentro da casa com os olhos vendados, não parece impossível. A mãe (Michelle Valey) nos parece resignada em relação às regras ditadas na casa. Incomodada, não tem outra forma a não ser continuar seguindo as ordens do marido.

No monólogo citado no começo dessa crítica, o diretor resume bem o comportamento dos pais para com os filhos, moldando-os da forma que bem entendem, como bem desejam. Dentro desse sistema criado pelo pai, eles só poderão sair de casa quando um de seus dentes caninos cair, o que lhes dá o direito de dirigir, já que é proibido ultrapassar os portões da casa senão dentro de um carro, por questão de segurança. Para ele, o filho só está pronto pra sair de casa quando seu dente canino nascer de novo. Sacou a analogia com o título do filme?

No filme, a única personagem que tem um nome é Christina (claro, já que é uma presença externa, alheia às peculiaridades da casa). Os moradores da casa não tem nome algum, o que faz todo sentido. Nomes são irrelevantes aqui, levando em conta a forma anônima e reclusa e completamente condicionada em que vivem.

O interessante na direção de Lanthimos é que ele não dá respostas pra nada (múltiplas possibilidades) e, mesmo que tente, o dano já está feito: irreparável, sem volta. Dente Canino nos faz refletir sobre a super proteção: a linha tênue entre o amor paternal e a obsessão pela preservação da inocência. Dá pra perceber que os pais tentam ao máximo não se perturbar (lê-se contaminar) com o ambiente que eles mesmo criaram. E quando percebem o erro é tarde demais.