Thiago Nolla | 10 de fevereiro de 2016

MultiTela no Oscar: The Hounting Ground e a cultura do estupro nas universidades dos Estados Unidos

[img src=”http://saladadecinema.com.br/wp-content/uploads/2016/02/thehuntingground3.jpg”] O começo da vida adulta e todo seu passe livre de inconsequência é uma maneira extremamente inteligente que o diretor e roteirista Kirby Dick encontrou de desarmar todos que começam a assistir The Hounting Ground, documentário sobre a cultura de impunidade e corroboração de casos de estupros nas universidades dos Estados Unidos. Começamos […]

[img src=”http://saladadecinema.com.br/wp-content/uploads/2016/02/thehuntingground3.jpg”]

O começo da vida adulta e todo seu passe livre de inconsequência é uma maneira extremamente inteligente que o diretor e roteirista Kirby Dick encontrou de desarmar todos que começam a assistir The Hounting Ground, documentário sobre a cultura de impunidade e corroboração de casos de estupros nas universidades dos Estados Unidos. Começamos esse forte registro com vídeos reais de pessoas recebendo a notícia de suas respectivas aprovações nas faculdades—um rito de passagem mais que comum na vida de todos, e um momento de felicidade que, quase que subsequentemente, passa a ser questionado pela falta de atenção dessas mesmas instituições que deveriam garantir esse crescimento profissional e pessoal dessas meninas.

Por isso, acompanhamos nos relatos de diversas entrevistadas toda a felicidade de estarem naquele ambiente. Muitas são de famílias que tradicionalmente estão nessas instituições há diversas gerações — e algumas se orgulham de ser a primeira geração nascida nos Estados Unidos a ter a chance de cursar o ensino superior. Acompanhamos cada caso e vemos a desconstrução do sonho desses jovens (alguns rapazes gays, inclusive) – mas, em especial, seguimos com mais atenção o caso dessas duas estudantes que bravamente resolveram levar seu caso adiante, transformando sua experiência em um movimento institucional para auxiliar outros universitários e universitárias na mesma situação.

No enredo, vemos de maneira nua e crua pelo roteiro do próprio Dick que o sistema de ensino superior omite e suprime as inúmeras denúncias de assédio e ataques sexuais para não propagar uma imagem de descontrole que impacte na escolha dos pais e alunos para os próximos anos. Somos afogados em dados que demonstram como as faculdades, e seus esquemas de manutenção de fraternidades sem supervisão, mantém uma cultura do estupro de maneira assustadoramente normalizada. Cada história, apesar das suas particularidades, apresenta alguns indícios de linhas comuns: além de sofrerem com a descrença de uma sociedade essencialmente machista, essas vítimas ainda são desacreditadas para não manchar a imagem dessas instituições – que muitas vezes preservam os acusados que acabam por ser os heróis e atletas que atrairão atenção e financiamento em temporadas vindouras.

Apesar do uso excessivo da trilha sonora em alguns momentos, ficamos progressivamente assustados com o total desdém das universidades com essas denúncias. No entanto, há uma compensação — desde os primeiros minutos e em diversos momentos, ouvimos uma voz bem familiar sussurrar “Till it happens to you”; reconhecemos o poderoso aceno dramático de Lady Gaga em arranjos fortes – além da marca registrada da estrutura das baladas tão poderosas tipo “músicas que grudam” de Diane Warren, autora de clássicos como I Don’t Want to Miss a Thing, nada menos que a música tema de Armagedon. A dupla escreveu uma música que resume a falta de atenção e personifica o drama dessas jovens que, além dos traumas que carregam, muitas vezes passam por momentos posteriores até piores dos que os do próprio abuso sexual – algo até mencionado pelas próprias entrevistadas. Mesmo que a canção talvez não seja a melhor da lista, esse choque de monstros pode facilmente abocanhar o Oscar de Melhor canção original – única estatueta dourada à qual o documentário está indicado.

No final, a direção segura de Kirb mantém o realismo com delicadeza, mostrando sempre dados específicos de especialistas e intercalando depoimentos diversos, nunca caindo num detalhismo técnico, excessivo e desinteressante – e sempre mantendo o lado humano essencial para em um projeto como esse. Quanto ao documentário, apesar de não estar listado como indicado ao Oscar da categoria, mantém-se como um registro que deve ser visto e revisto como o grande filme denúncia que é. Fora dos cinemas, sem estrear no circuito das telonas, está a um clique no Netflix.