Bruno Martuci | 8 de fevereiro de 2016

Filho de Saul

[img src=”http://saladadecinema.com.br/wp-content/uploads/2016/02/a45801662a31159f1d0d206ec5b1af9dec2c1c15.png”] Ambientado em um cenário claustrofóbico e angustiante adornado com duchas Zyklon-B e instalações para eliminação de cadáveres num dos holocaustos nazistas mais infames da Segunda Guerra, Auschwitz, “Filho de Saul” é difícil para a maioria das pessoas digerir, principalmente judeus, quanto mais para escrever – e quanto mais para analisar. Admito que na […]

[img src=”http://saladadecinema.com.br/wp-content/uploads/2016/02/a45801662a31159f1d0d206ec5b1af9dec2c1c15.png”]

Ambientado em um cenário claustrofóbico e angustiante adornado com duchas Zyklon-B e instalações para eliminação de cadáveres num dos holocaustos nazistas mais infames da Segunda Guerra, Auschwitz, “Filho de Saul” é difícil para a maioria das pessoas digerir, principalmente judeus, quanto mais para escrever – e quanto mais para analisar. Admito que na maior parte do tempo fiquei na defensiva, temendo o que poderia acontecer no próximo frame. O resultado foi uma grande fascinação tanto pela coragem do diretor húngaro László Nemes quanto pela técnica que inventou – ou redescobriu – ao colocar o espectador literalmente nos ombros de um prisioneiro de guerra em uma quixotesca missão em busca de apaziguamento espiritual.

O protagonista é Saul Ausländer (Géza Röhrig), integrante de um grupo especial de judeus (os Sonderkommandos) aos quais é consentido uma “vida prolongada”, visto que são obrigados a realizar as mais grotescas tarefas, como transportar corpos de homens, mulheres e crianças das câmaras de gás aos crematórios e limpar a sujeira deixada pelos cadáveres.

Nemes e seu diretor de fotografia, Mátyás Erdély, configurou “Filho de Saul” quase que totalmente pelo ponto de vista da personagem principal; em nenhum momento – com uma única exceção – conseguimos reconhecer quaisquer um dos mortos. Muito pelo contrário, vemos apenas partes de corpos, como braços, pernas ou torsos, normalmente turvos juntamente ao cenário. Esses borrões trazem consigo uma imensa função dramática: sugerir que, para realizar tais tarefas, Saul teve que se abdicar da identidade de seus companheiros judeus, incluindo sua própria humanidade.

A exceção supracitada é um garoto adolescente que, de algum modo miraculoso, sobreviveu à chacina da câmara de gás. Levado para longe das duchas, é brutalmente sufocado pelos médicos nazistas – uma cena um tanto quanto pesada, a qual leva o espectador a buscar algum tipo de conforto no fato do menino estar inconsciente de tanto sofrer com os agonizantes efeitos do gás tóxico. Entretanto, a atitude de Saul é mais circinal: ele diz a um dos colegas prisioneiros que aquele garoto é seu filho e que deve enterrar o corpo dentro dos parâmetros ritualísticos do Judaísmo – incluindo a presença de um rabino. E é nesse momento que a jornada épica começa, por dois simples motivos: o corpo está marcado para dissecação e os rabinos identificados pelos militares são imediatamente executados.

Entretanto, a história é desenvolvida de modo a nos fazer acreditar que aquele não é o filho de Saul. À medida que o caminho do protagonista cruza o de outros personagens, somos levados a acreditar no que é reafirmado mais de uma vez: que aquele homem não tem filhos.

Estamos lidando com alguém louco. Mas ele tem, obviamente, uma carga de sanidade muito maior que os outros – justamente pelo simbolismo a princípio clichê: a ideia de que “as crianças são o futuro da nação”. E Nemes desenvolve essa premissa de forma eximiamente bem estruturada: o cadáver do garoto surgiu como o fator inconsciente de Saul – a representação do povo judeu – de se reconectar aos seus valores e crenças em meio ao caos e desespero.

O conceito de identidade é altamente explorado no longa. Talvez como forma de manter o cenário e os outros atores escondidos pelo borrão, o cineasta criou uma gama de artifícios para impedir o reconhecimento de outros Sonderkommandos além de Saul: nevoeiros, imagens frenéticas, sons alucinantes, a própria noite, entre outros. Mas o principal “ingrediente” escolhido foi a câmera solta: Nemes optou por carregar a câmera em mãos, tornando cada frame mais enérgico e mais angustiante que o anterior. E por mais que a subjetividade não tenha sido trabalhada em seu arco completo, a técnica escolhida coloca a audiência em um claustrofóbico campo de concentração, fazendo-a perder a noção de espaço e tempo dentro de paredes instransponíveis.

Vale ressaltar que “Filho de Saul” é, na sua essência, sinestésico. O roteiro é fraco, não por sua falta de originalidade, e sim pela pouca exploração dos personagens ou do diálogo – o que é justificado pela indiferença dos nazistas frente ao povo judeu, colocando-os sob o mesmo rótulo. A trilha sonora é praticamente inexistente, mas escolhida com cuidado: uma música clássica austro-húngara que declina à medida que conhecemos o protagonista. Entretanto, os próximos 120 minutos ficam no total silêncio – e é aí que a sinestesia faz seu papel.

Nemes e Erdély escolhem trabalhar principalmente com o jogo de luz e sombra e com cores vibrantes. “Filho de Saul”, em sua maior parte, é um filme escuro que resgata o sentimento de horror dos prisioneiros do holocausto. Os momentos “vivazes”, por assim dizer, vêm nas piores horas: a cremação dos corpos, o fuzilamento de rabinos e a guerrilha entre judeus e alemães – para os quais vemos as cores laranja e vermelho. Os efeitos sonoros causam um efeito dúbio sobre o telespectador: por mais convincentes que sejam os gritos de tortura, é bem provável que a ideia principal é torná-los metadiegéticos e associá-los aos traumas psicológicos dos Sonderkommandos.

Apesar do filme em si não trazer nada de novo à infâmia do holocausto nazista, a estruturação do filme é impressionante – passível de comparação à obra de Alejandro G. Iñarritu, “Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)”: não estamos apenas presos em quatro paredes; também nos vemos trancafiados na cabeça de uma figura ferozmente impulsionada pelo inconsciente e pela irracionalidade. Estamos desinteressados assim como o protagonista, não pelo fato de ele ser louco, e sim por sua loucura ser monótona – assim como o filme. Assim como “Birdman” e outros testes de resistência – tour de force – “Filho de Saul” mantém seu ritmo através das técnicas de câmera e sua angustiante subjetividade.