Eric P Sukys | 2 de fevereiro de 2016

cine remix: Um conto de Carnaval virtual

[img src=”http://saladadecinema.com.br/wp-content/uploads/2016/02/cine-remix-61-carnaval-virtual.png”] (O último Carnaval de Cine-Remix foi noir. Se os anos mudam, também deveriam mudar as datas festivas: em 2016, levamos o cenário para o mundo virtual, fomos alguns anos no futuro e descobrimos uma história que alguns lerão como comédia, outros como drama. Com sorte, qualquer um com acesso à internet se identificará, […]

[img src=”http://saladadecinema.com.br/wp-content/uploads/2016/02/cine-remix-61-carnaval-virtual.png”]

(O último Carnaval de Cine-Remix foi noir. Se os anos mudam, também deveriam mudar as datas festivas: em 2016, levamos o cenário para o mundo virtual, fomos alguns anos no futuro e descobrimos uma história que alguns lerão como comédia, outros como drama. Com sorte, qualquer um com acesso à internet se identificará, talvez a ponto de verem, aí, um documentário.)

Lilo estava no meio de uma correção quando viu o primeiro relâmpago. Cancelou os downloads paralelos; interrompeu a pizza que chegava pela impressora 3D; concentrou todo o processador do PC na tarefa: apagar as 4.276 cópias da foto de Dona Milena bêbada e pendurada num carro alegórico, de ponta-cabeça. Lilo não queria nem imaginar o quanto se atrasaria se a energia caísse — cada segundo a mais significava outras dezenas de printscreens da foto de Dona Milena em outros aparelhos.

Todo Carnaval era sempre a mesma coisa. Lilo recebia dezenas de pedidos para que uma foto, um áudio ou um vídeo sumissem, como se nunca tivessem existido. “Correção”, era como Lilo chamava; a polícia preferia o termo “crime”. O trabalho era grande e delicado, pois envolvia rastrear o arquivo em celulares, computadores, tablets e às vezes até geladeiras, torradeiras, sofás ou colares — em resumo, qualquer objeto capaz de baixar, exibir e enviar uma foto. O esforço rendia um bom pagamento, em dobro pelo risco envolvido.

Com medo de atrair um raio à sua casa, Lilo apagou a luz. Cantos cobertos pela penumbra, a tela emitindo um azul fraco, seu reflexo no rosto pálido de Lilo: um cenário e tanto para assistir a uma trovoada. Enquanto o computador escaneava os aparelhos de todos os amigos de Dona Milena, e dos amigos de seus amigos, e dos amigos deles (e por aí em diante), clarões preenchiam a sala. Lembrava uma balada, e talvez os vizinhos tenham confundido a cena com um animado baile de Carnaval particular.

Lilo só pensava na correção. 88%, e desacelerando. Um grupo de amigos longe da cidade devia estar recebendo a foto, conectados à capenga conexão 6G comercial. Lilo logo remanejou as prioridades: preferia voltar àquelas cópias em breve, e adiantar a correção de outra área. Trovões ressoaram em seu apartamento, o copinho plástico com café chegou a tremer. 91%.

O computador rugia como um motor velho quando chegaram os primeiros pingos. Lilo se deu conta de que uma situação grave pede uma solução grave, e foi buscar seu processador auxiliar. Sim, o outro acessório provavelmente deixaria a internet mais lenta; sim, haveria um maior consumo de eletricidade; sim, isso talvez atraísse um raio para o apartamento. Mas Dona Milena deu a Lilo uma missão — e pagou adiantado.

96%. Contra o provável superaquecimento, Lilo ligou dois ventiladores e abriu as janelas, na esperança de uma corrente de ar que refrescasse o computador. Um punhado de chuva entrou na sala, embalado pelo vento, e ouviu-se uma pausa na marchinha que começava a tomar a rua. Como Lilo, os foliões pareciam desafiados pelo anúncio de temporal — valia a pena continuar? 98%.

Com 99%, Lilo prendeu a respiração. Odiava esse tipo de momento: o último instante em que tudo ainda pode dar errado. Bastava uma pequena variação da eletricidade, e lá se ia a correção; se a chuva e o vento aumentassem, o computador poderia se molhar, e lá se ia a correção; Lilo poderia derrubar um dos processadores, e lá se ia a correção. Por isso, tomou a última medida para acelerar o apagamento: desligar a tela.

Durou apenas um segundo, mas um segundo imenso para Lilo. Nesse instante, ela conseguiu ouvir a marchinha ser retomada; um vizinho abriu a janela e gritou, não muito longe dali; alguém na rua assoprou uma vuvuzela; seu computador apitou de um jeito que Lilo poderia jurar que era alívio; os processadores desaceleraram. No momento seguinte, chegou uma mensagem de Dona Milena: “vi q voc^^e acabiiu iobrigaedaq mey amir”, em que Lilo reconheceu um agradecimento levemente alcoolizado.

Pelo jeito, Dona Milena faria um novo pedido no dia seguinte. Lilo não se incomodava. Nessas horas, gostava de se ver como um tipo de guardiã do Carnaval dos outros. Tinha agora que torcer para a chuva acabar logo: até meia-noite, um vídeo de um tal de Yago dançando precisava desaparecer de 358 computadores, celulares, tablets, geladeiras…