Thiago Nolla | 11 de novembro de 2015

made for TV: Beasts of No Nation e a entrada do Netflix no predatório mercado hollywoodiano

[img src=”http://saladadecinema.com.br/wp-content/uploads/2015/11/17702650.jpg”] O maior temor daqueles produtores (que imaginamos) bonachões fumando charuto, e principalmente dos grandes estúdios de Hollywood, aconteceu: o Netflix entrou de vez no mercado cinematográfico. O gigante de conteúdo de entretenimento em streaming já vinha dando sinais de que não deixaria de comprar essa briga; por isso, e ainda por incomodar fortemente […]

[img src=”http://saladadecinema.com.br/wp-content/uploads/2015/11/17702650.jpg”]

O maior temor daqueles produtores (que imaginamos) bonachões fumando charuto, e principalmente dos grandes estúdios de Hollywood, aconteceu: o Netflix entrou de vez no mercado cinematográfico. O gigante de conteúdo de entretenimento em streaming já vinha dando sinais de que não deixaria de comprar essa briga; por isso, e ainda por incomodar fortemente as redes de televisão americanas com suas produções originais sempre acima da média (algumas ótimas, outras excelentes, mas todas minimamente boas), os manda-chuvas do cinemão já sabiam que o Netflix não entraria nesse campo minado com pouco calibre.

Beasts of No Nation, primeiro longa-metragem de ficção produzido, bancado e idealizado pelo Netflix, estreou no Festival de Toronto e em algumas salas de cinema espalhadas pelos Estados Unidos; menos de uma semana depois, já estava disponível para as assinantes do serviço na América do Norte – e, na semana seguinte, já podia ser conferido no catálogo brasileiro. A estréia nos cinemas tem uma única estratégia, e não tem a ver com visibilidade de público – é uma predisposição classificatória para as premiações. O Netflix já estreou como realizador de cinema de olho no Oscar – e, apesar da gritaria gerada pelos grandes estúdios de cofres polpudos, a recepção da crítica especializada já pavimentou um caminho para a estatueta.

Baseado no livro homônimo de Uzodinma Iweala, o filme conta a história de Agu (Abraham Attah), uma criança que vive em um país fictício da África em meio a uma Guerra Civil. Após sua família ser forçada a sair de sua cidade por conflitos entre governo e milícias, Agu se vê sozinho e é cooptado por uma dessas forças militares independentes – quando é completamente absorvido por essa realidade bélica, passando até a ser um dos pupilos e protegidos do grande comandante (Idris Elba) dessa facção.

Como estamos na África, a premissa de um país fictício não generaliza, mas sim universaliza uma realidade tão comum naquele continente. Agu é vítima direta de um conflito de séculos – que começou em tempos de explorações contínuas e desmedidas das potências europeias, acarretando uma divisão de terras por premissas ocidentais, batalhas por tráfico de diamantes e financiamento de ditaduras por motivos escusos. Ele é a ponta da cadeia, o último item dessa sequência sistêmica – e aquela situação e história da qual sempre buscamos desviar nossos olhares.

Por isso, não há amenização por parte do diretor, roteirista e fotógrafo do filme – ninguém menos que Cary Fukunaga, responsável pela ótima e impactante primeira temporada de True Detective. O processo de amadurecimento de Agu é, sem sombra de duvidas, uma caminhada à desumanização – que, no desenrolar do filme, nos força a termos reações inversamente proporcionais aos aparentes desdéns do personagem. Com excessos e cenas propositalmente explícitas, o cinema de Fukunaga não poupa ninguém; a decepção vem do fato de que, por vezes, até o espectador com estômago mais forte deverá questionar o porquê de cenas tão violentas, quando insinuações fariam muito mais sentido até para a (des)construção do mundo pueril daquela criança.

Tendo acertado na maioria dos poucos diálogos, e com uma bela direção de cena e atores – há um plano sequência em uma casa de um vilarejo que é tão digno de nota quanto o mesmo e aclamado recurso de filmagem que lhe rendeu um Emmy de direção em True Detective – é perceptível que direção de fotografia assinada por Fukunaga deixa a desejar com enquadramentos e filtros pouco práticos e meramente estéticos; em um ambiente tão naturalmente bonito, deixar a encenação transparecer naturalmente teria sido mais interessante.

Enquanto Idris Elba constrói talvez seu melhor momento no cinema (digno, no mínimo, de indicações às premiações como coadjuvante) – montando um comandante tão humano quanto cruel e construído das mesmas engrenagens brutais, venais e viciosas nas quais Agu adentrou – Abraham Attah até impressiona com tanta maturidade em seu desempenho. Com olhos expressivos, e uma mudança gradual e assustadora, o jovem ator – que ganhou o Prémio Marcello Mastroianni para jovens talentos no último Festival de Veneza – constrói Agu partindo da desconstrução da infância e, acima de tudo, da consciência de que suas memórias serão seu único alento. Um primor, meus caros, sua cena final: o momento em que enxergamos o quanto Attah tinha consciência (instintiva ou não) do seu processo de (des)construção.

Então, o Netflix entrou nesse mercado “bestificador” (sem o perdão do trocadilho) do cinema e das premiações de maneira tão impactante quanto nas produções de séries e documentários televisivos. Beasts é um bom filme com ótimos momentos; uma história que é um retrato da barbárie do cotidiano, daquelas realidades às quais usualmente escolhemos fazer “vistas grossas”. Nesse curioso e irônico paralelo, pode-se dizer que é possível que Oscar, Globo de Ouro e outras premiações também tentem ignorar a qualidade do filme, seguindo seu preconceito com esse novo formato e corroborando sua servidão ao lobby dos grandes estúdios. Vejamos até quando isso será possível, coleguinhas.