Thiago Nolla | 13 de maio de 2015

made for TV: Quinquin: Minissérie de TV leva uma humanidade bestial aos cinemas

[img src=”http://saladadecinema.com.br/wp-content/uploads/2015/05/image1.jpg”] Pode-se dizer que, para contar uma história, é importante que, em algum momento da encenação, mostre-se a empatia que seu narrador (ou diretor, no caso) tem por seus personagens. Identificação é essencial para que possamos acompanhar credulamente um enredo com começo, meio e fim. Logo no início de O Pequeno Quinquin – minissérie […]

[img src=”http://saladadecinema.com.br/wp-content/uploads/2015/05/image1.jpg”]

Pode-se dizer que, para contar uma história, é importante que, em algum momento da encenação, mostre-se a empatia que seu narrador (ou diretor, no caso) tem por seus personagens. Identificação é essencial para que possamos acompanhar credulamente um enredo com começo, meio e fim. Logo no início de O Pequeno Quinquin – minissérie francesa corajosamente lançada nas salas de cinema brasileiras semana passada –, uma sequencia mostra, seguidamente, um plano aberto com a menina Eve (Lucy Caron) observando atentamente o menino homônimo ao título – e logo vemos que Quinquin (Alane Delhaye) tem um rosto com marca de uma aparente reparação de lábio leporino. De volta à Eve, a única reação que percebemos é um sorriso cheio de ingenuidade e paixão juvenil. Fomos fisgados pela empatia, então.

Entramos, assim, nesse universo que poderia ser paralelo, se não fosse tão realista. Em mais de três horas – separadas em quatro episódios ou não –, acompanhamos a história de uma pequena cidadela ao norte da França, e alguns estranhos assassinatos que lá ocorrem. Dois integrantes da polícia nacional francesa, Van der Weyden (Bernard Pruvost) – um quase inspetor-Pantera-Cor-de-Rosa – e seu parceiro Carpentier (Philippe Jore), chegam ao local para realizar as investigações. Em tom paradoxalmente naturalista e farsesco, os investigadores passam por vários tropeços na busca do(s) culpado(s), enquanto acompanhamos a (des)construção gradual dos personagens e das morais sociais – tudo por um prisma delicadamente comportamental, uma trajetória de aprendizado que compartilhamos com o próprio Quinquin.

Bruno Dummont, responsável por filmes-incômodo como Camille Claudel, 1915 e A Humanidade, costura (roteirizando e dirigindo) essa história de maneira crua e direta, com não-atores e planos que aparentam se estender mais do que o necessário – revelando nessa equação delicadezas únicas e cheias de realidade. Dummont completa a encenação escondendo paralelos de maneira brilhante em diálogos econômicos e em trejeitos equilibradamente caricatos dos personagens; estamos na cidadela, mas estamos na França e em qualquer construção social da humanidade em tempos contemporâneos: preconceito racial e religioso, imbecilidade, irracionalidade e bestialidade suprimem delicadezas e moldam comportamentos de maneira inumana.

As autoridades de intermediação social (a Polícia Nacional, no caso) e de responsabilidade familiar inibem a discussão: os pais brigam com Quinquin sem conversar, o Inspetor investiga de menos e se impõe demais. Carpentier, o assistente questionador, é tratado com desprezo pelo chefe. Não por acaso, os adultos parecem mais mimados do que a própria juventude. Nesse cenário, nada mais comum do que se dar mais razão a uma explicação paranormal em vez de priorizar a racionalidade investigativa: as mortes que aparentam não ter explicação são sempre culpa do demônio, e não de um ser que pode assumir responsabilidade pelos seus atos. Em um raro momento de lucidez ante a infantilidade social generalizada, Van der Weyden afirma, em meio a um suicídio sem explicação aparente: “A França o deixou assim”; ele está culpando o Estado, mas, ao mesmo tempo, falando de todos os franceses. Que texto, coleguinhas.

Dizem que um filme bom é equivalente a um soco no estômago; uma obra que mexe com seu mundinho ao ponto de expandir sua visão. Validações à parte, O Pequeno Quinquin certamente se encaixa nessa definição – visto como filme, nos cinemas, ou como minissérie, quase como que em doses homeopáticas. A obra de Dummont choca tanto quando envolve, incomoda tanto quanto embriaga – e expõe o quão bestial é a normalidade. Sempre sem cortes, com tempo de vida real, a infância é temida em sua crueza, e acaba sendo brutalmente reprimida por uma humanidade que, assim como o assistente Carpentier, amadurece sem permissão para questionar nem filosofar.