Eric P Sukys | 3 de setembro de 2014

cine remix: Woody Allen de olhos bem fechados

[img src=”http://saladadecinema.com.br/wp-content/uploads/2014/09/De-olhos-bem-fechados.jpg”] Não foi noticiado, mas um dos principais itens da exposição de Stanley Kubrick (a que passou pelo MIS, em São Paulo) era um diário de filmagem dos anos 1970. Ele não chegou a entrar na mostra porque ainda estavam comprovando sua autenticidade, confirmada ontem. Escrito por um continuísta, o diário retrata as gravações […]

[img src=”http://saladadecinema.com.br/wp-content/uploads/2014/09/De-olhos-bem-fechados.jpg”]

Não foi noticiado, mas um dos principais itens da exposição de Stanley Kubrick (a que passou pelo MIS, em São Paulo) era um diário de filmagem dos anos 1970. Ele não chegou a entrar na mostra porque ainda estavam comprovando sua autenticidade, confirmada ontem.

Escrito por um continuísta, o diário retrata as gravações da primeira versão de “De Olhos Bem Fechados”. Curiosamente, o ator principal estava longe de ser um Tom Cruise (ainda que ambos sejam baixinhos): Woody Allen (para saber mais sobre essa versão, leia aqui. Veja abaixo alguns trechos:

Dia 1
Dormi muito mal. Ou melhor: cochilei três minutos no meio da filmagem, com a cabeça apoiada no maquiador e os pés em cima do estagiário de som. Stanley e Woody continuaram rodando. Antes de apagar, perdi a conta de takes e planos; estávamos no ducentésimo vigésimo terceiro, acho (talvez mais?). Nos primeiros setenta, Stanley estava insatisfeito com a geometria da sombra no lado esquerdo do rosto de Woody. Depois, foi Woody quem cismou com o texto de Stanley. Sentia que não estava muito trabalhado o subtexto da frase “Querida, essa carne está tão saborosa que me dá uma náusea sartreana”. Stanley disse: “Woody, isso não está no roteiro”, ao que Allen respondeu, “pois é, é aí que eu queria chegar”.

Dia 4
Stanley ainda não gostou da geometria da sombra. Enquanto ele e o diretor de fotografia discutem exposição, lentes e câmeras. Nós ríamos das piadas de Woody. O engraçado dele é que as piadas nos divertem primeiro e nos deprimem depois. Nunca conheci um humorista que nos deixasse de ressaca. O único comentário que Kubrick faz é um áspero: “Incline a cabeça assim no próximo take, Woody.” Rimos de novo, dessa vez de nervoso.

Dia 7
Ou dia 3? O resto da equipe já se despediu de suas famílias, conformados com a perspectiva de morar no set. O calendário da assistente de direção diz que estamos aqui há uma semana; a verdade é que o tempo parece passar mais devagar do que quando assistimos a “2001: Uma Odisseia no Espaço”. Kubrick e Allen tiveram uma briga feia hoje. Começou com qual o melhor ângulo para filmar o abraço do casal (Allen e Mia Farrow, não Allen e Kubrick); quando percebemos, eles estavam discutindo aos berros sobre “Guerra e Paz”, de Tolstói. Daí, passaram a questionar se há Deus, e, em caso positivo, se Ele é mau ou apenas desleixado. Concordo com a primeira opção: como Ele pode permitir que nós trabalhássemos com Allen e Kubrick?

Dia 9
Hoje, Kubrick e Allen chegaram o mais perto possível de uma briga física. Kubrick disse que o humor de Allen padecia de um pedantismo incurável e virulento. “Pelo menos eu faço rir, não é, Dr. Fantástico?”, foi a resposta. O diretor arremessou em Allen um livro (grosso, capa dura, em italiano) de caricaturas de Fellini.

Dia 12
O estúdio cancelou o filme. Desarrumamos o set hoje, mais desanimados que uma versão de “Laranja Mecânica” censurada para menores. Kubrick e Allen se encontraram, acho que pela última vez. Uma assistente de arte derrubou um caderno com os storyboards de Kubrick, onde Allen leu “take à maneira de ‘Persona’ e aí perguntou: “Bergman?” O diretor olhou apenas e acho que devem ter se entendido, porque Kubrick disse: “assistiu ao último?”. Comentaram com entusiasmo o filme: “‘Gritos e Sussurros’ só não é o melhor de Bergman porque ele fez ‘O Sétimo Selo’”, disse Allen. A conversa acabou quando Kubrick respondeu que só uma besta não via em “Morangos Silvestres” a obra-prima do sueco. A equipe inteira viu os agentes tentando apartá-los, mas nem essa adrenalina toda nos impediu de cochilar, com o perdão do trocadilho, “De Olhos Bem Fechados”.