Eric P Sukys | 13 de maio de 2014

cine remix: Por um fio, de Lars Von Trier

Nada ilustra mais a banalidade da existência do que a agonia causada pelos serviços de atendimento por telefone. Só um deus maligno conceberia um mundo com o sofrimento despropositado de esperar horas pela transferência para outro setor, que também não vai resolver o problema. É tanta dor e humilhação, que até parecemos uma protagonista de […]

telemarketing

Nada ilustra mais a banalidade da existência do que a agonia causada pelos serviços de atendimento por telefone. Só um deus maligno conceberia um mundo com o sofrimento despropositado de esperar horas pela transferência para outro setor, que também não vai resolver o problema. É tanta dor e humilhação, que até parecemos uma protagonista de filme do Lars Von Trier.

Talvez o dinamarquês se interessasse pela metafísica amarga desse tipo de serviço. Afinal, estão presentes temas que lhe são caros: a relação sadomasoquista – entre atendente e consumidor –, o despertar da selvageria – já tentou ficar calmo depois de ouvir tantas e tantas e tantas e tantas e tantas e tantas vezes as mesmas musiquinhas? –, e, claro, a possibilidade de separar a história em episódios:

Prólogo

Dedos discam um número de celular (que surge na tela conforme é digitado). Soa um “alô” masculino, com jeito de quem acabou de acordar, cortado por uma voz feminina soluçante. “Acabou”, chora a moça, “não tem jeito”. Confuso, o rapaz vai dizer à namorada que não se preocupe, mas mal tem tempo de responder e o telefone é desligado. A câmera (na mão) foca o rosto sorridente, de uma felicidade quase infantil, da moça (Charlotte Gainsbourg). Ela disca outro número, outra voz masculina atende: “Acabou”, ela soluça. E assim por diante.

 Capítulo I: Anette

A moça disca o número comercial, um 0800 qualquer, e segue as instruções da máquina até ouvir a voz de outra mulher, chamada Anette e disposta a ajudar no que a cliente for estar precisando, pois não?

A moça chora.

A moça diz que ninguém acusou o recebimento do último boleto quitado.

A moça grita.

Anette fica tensa, tenta transferir a ligação para o setor responsável, mas a moça…

A moça se solidariza, depois ergue a voz, depois ameaça Anette e aí se acalma. Ela respira fundo, emenda um mantra que aprendeu com uma amiga, pede para Anette repetir com ela (elas recitam o mantra juntas, contra a vontade de Anette).

A moça conta detalhes do relacionamento com sua prima espírita para Anette.

Quando Anette detecta o problema da moça, a moça se lembra de outro problema, que está sob a responsabilidade do setor de Anette.

E aí Anette tem de ouvir, por mais quarenta e seis minutos (desses, vinte e um transcorrem após o fim do expediente de Anette) uma descrição detalhadíssima do modem da moça (“E há um parafuso com um aspecto metálico brilhante, de fazer inveja ao “Homem de Lata” de “O Mágico de Oz” ou ao robô de “Metrópolis”, ou ainda aos ciborgues das narrativas de Isaac Asimov…”)

Capítulo II: Santo André

– Olá, senhora, aqui quem fala é Tomas, em que posso ajudar?

Foi no fim do mês, Tomas contou, que recebeu a ligação de uma moça, a princípio desesperada, mas com um problema simples: ver em quanto dinheiro sua fatura havia fechado. Orientando-a quanto à interface do programa, Tomas pôde localizar o defeito e, juntos, solucionaram o problema. Ela deu um gritinho agudo de felicidade, contou Tomas. E ela disse que queria fazer a avaliação do atendimento, para elogiar um trabalho bom, como o dele. Orgulhoso de si, o rapaz se fez de modesto, agradecendo, mas gentilmente falando a ela que não era necessário. Eu faço questão, disse a moça, que engatou um papo furado com Tomas. Eles descobriram que tinham muito em comum: ambos moravam em Santo André, tinham conta no banco em que Tomas trabalhava, conheciam a Anette, filha da Silvia e do Seu Geraldo. Tomas teve a impressão de que a moça também estava se divertindo, talvez achasse graça em conhecer alguém assim, pelo telefone, pelo atendimento!, uma coisa tão estressante e bestializadora. Rindo, a moça falou que era uma pena eles terem de desligar logo, já que o chefe de Tomas poderia repreendê-lo. O rapaz concordou; sentiu algo pulsando na garganta, que apertava sua voz e quase a desafinava; mas arriscou-se: por que ela não passava um contato, um e-mail talvez? A gargalhada dela e, em seguida, a mudez do telefone bastaram.

E ainda por cima Tomas teve um desconto no salário: ficara mais de uma hora “vadiando”, como anotou o chefe.

 Capítulo III: Se você encara o abismo…

Ligado o computador, a moça coloca o celular no viva-voz. Disca um número no telefone, outro no Skype. Atendem:

– Boa tarde, aqui é Juliana, como posso ajudar

– Boa tarde, aqui é Marcos, como posso ajudar

– Desculpe, senhor, a ligação está ruim

– Você pode falar mais alto, eu…

– Senhor, me perdoe, mas…

– Quem está falando?, aqui é….

(…)

(…)

Uma moça; duas, quatro, seis, oito empresas. Isso só na parte da manhã.

Capítulo IV: Vívida

Em pé, a moça amarra o fio da extensão ao redor da coxa, enquanto espera alguém pegar do outro lado da linha. Estranho: o Cento de Valorização da Vida (CVV) não costuma demorar para atendê-la. Dessa vez, é uma senhora que a atende, uma voz doce de quem deve ter sido professora da pré-escola em outra encarnação.

– Senhora, tem um fusca-gelo aí fora?

Como a moça já esperava, o sermão vem, e violento. A professora de pré-escola parece se transformar em policial, o tom maternal ganha uma rispidez de carcereira e uma seriedade de cineasta metido a intelectual. A moça aperta o fio ao redor da coxa, até ficar vermelha.

– Desculpe-me, senhora, é o nervosismo.

A moça soluça, com um efeito imediato sobre a senhora do CVV. Amolecida a megera, a moça diz:

– A gente se atrapalha quando quer passar um Trotsky.

A ofensa é, antes de tudo, um afrodisíaco.

A moça ouve a senhora, provavelmente ultrajada, desligar o telefone. Na coxa inchada, o fio da extensão deixou alguns hematomas, pequenas argolas roxas que lembram o beijo de uma boca com batom. Mal passou o formigamento de uma perna, o fio da extensão já está ao redor de outra, e a moça, com outro CVV:

– Com licença, senhora, o Ringo Starr?