Eric P Sukys | 18 de março de 2014

cine remix: Deus e o Diabo na Terra do Sol

Não, eu (ainda) não vou remixar o Glauber Rocha. Só peguei o título emprestado, porque, assim como a grande extensão do texto, ele casa perfeitamente com a mistura de hoje. De um lado, um dos maiores (literalmente; ele era bem gordinho) e mais imitados (essa indireta é para você, Tarantino) diretores de faroestes da história […]

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Não, eu (ainda) não vou remixar o Glauber Rocha. Só peguei o título emprestado, porque, assim como a grande extensão do texto, ele casa perfeitamente com a mistura de hoje. De um lado, um dos maiores (literalmente; ele era bem gordinho) e mais imitados (essa indireta é para você, Tarantino) diretores de faroestes da história do cinema: Sergio Leone. Do outro, “O Poderoso Chefão” do horror, o filme de terror supremo, que lançou a moda (até hoje em vigor) de demônios possuindo menininhas: “O Exorcista”.

Em 1973, Sergio Leone já era lenda: sua Trilogia dos Dólares e o epílogo magistral (que gerou outra trilogia, mais irregular na qualidade) “Era uma Vez no Oeste” tinham redefinido os parâmetros do faroeste. Se antes o nível era alto (John Ford fizera “O Homem que Matou o Facínora” havia pouco mais de 10 anos), depois de Leone ficou estratosférico: basta dizer que o diretor italiano arrancou a melhor atuação do pétreo Charles Bronson.

Enquanto isso, “O Exorcista” era um projeto tocado por um louco (o genial William Friedkin, façamos justiça), cheio de potencial, buracos no orçamento e, principalmente, riscos para o estúdio. Não é um delírio imaginar que, talvez, se algum engravatado fosse um pouco mais teimoso, Friedkin dançaria e a cadeira de diretor (oferecida para Mike Nichols [A Primeira Noite de um Homem], Arthur Penn [Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas] e Stanley Kubrick [insira aqui o seu clássico preferido]) estaria de novo vazia, pronta para que Leone a assumisse e fizesse algo bem próximo disso:

Deserto do Novo México, segunda metade do séc. XIX. Homens cavam suando, gordas gotas que escorrem da testa, dos braços, do peito. Eles estão sujos, cansados e exaustos: chegaram pela manhã, em breve o sol vai se pôr e em nenhum momento o velho de preto lhes deu trégua. Ao redor deles, moscas voam, ora pousando, ora sendo engolidas. Só o velho de preto respira sem dificuldade, anda sem doerem-lhe as pernas, fala sem medo de apanhar. Quando um dos peões acha um boneco de cerâmica com a aparência de um demônio, o velho corre (conseguimos ver seu rosto [Henry Fonda] e sua roupa [uma batina]). Toma o artefato nas mãos e o encosta junto ao peito. Um vento sopra, a princípio agradável, depois violento, depois arrebatador.

Longe dali, numa cidadezinha praticamente abandonada, chega um homem a cavalo. Quase loiro e muito mal humorado, fumando um toco de charuto, o Exorcista (Clint Eastwood) desmonta e caminha pelo lugar. Conforme seus passos ecoam na cidadezinha, também se ouve portas batendo, fechadas à força. Nem a Igreja está aberta: o sacerdote responsável partiu numa expedição. Dentro de uma casinha prestes a desmontar-se, o Exorcista ouve uma tosse comprida, exausta, sofrida. Ele resolve investigar.

Lá dentro, ele vê Teresa à cabeceira do leito em que dorme sua filha, Luz. Teresa está tensa, segurando um pano úmido contra a testa da menina, que convulsiona. Sussurrando uma prece em espanhol, Teresa não repara quando o Exorcista abre a porta. Ele mal olha o quarto, os olhos fixos na mãe impotente para aliviar o sofrimento da filha. O corpo da menina se contorce: seus movimentos ficam mais intensos depois que ela percebe a presença do Exorcista.

Uma voz grave de demônio começa a falar através da boca da menina, que baba, espuma e cospe na cara da mãe. Sua fisionomia infantil se deforma: a pele fica enrugada, a língua começa a feder e seus olhos faíscam. Assustada, Teresa olha o visitante e tenta expulsá-lo, mas ele não entende espanhol e, se entendesse, também não sairia de lá. O demônio alojado em Luz vocifera contra o Exorcista, xinga-o de covarde e aproveitador, de sem caráter, filho da puta, canalha:

– Venha fazer companhia para sua mãe, ela não aguenta mais as queimaduras, os banhos de enxofre e os açoites três vezes ao dia!

O Exorcista se aproxima da menina possuída, ignorando Teresa, que tenta puxá-lo para trás, aos gritos, desesperada. Tirando da boca o seu toco de charuto, o Exorcista encosta a ponta acesa na barriga do diabo. Depois de fingir sofrimento, o demônio ri e cospe um charuto inteiro na cara do Exorcista. O homem enfia o charuto na boca da menina e risca um fósforo para acendê-lo, dizendo:

– Deixa a menina em paz.

Os sintomas da possessão se agravam: a menina levita no ar. A cabeça dá um giro de 360 graus e pára; aí então o tórax dá o mesmo giro; depois as pernas. O Exorcista continua:

– Agora.

A garota desmaia. Sua fisionomia volta ao normal, mas o cheiro podre continua. Chorando, Teresa a abraça, mas o Exorcista afasta a mãe e abre os olhos da menina desacordada. Ainda faíscam.

Pronto para sair da casa, o Exorcista se vira para olhar mãe e filha. Ele se permite demorar um instante, antes de reendurecer seu rosto, a testa franzida e a mão levemente trêmula. Percebendo que o forasteiro partiu, Teresa desmorona em lágrimas, sem saber se a visita daquele homem estranho fez mais bem do que mal à sua menina.

No meio da cidadezinha, o Exorcista é parado por três homens a cavalo e reconhece, no peito do mais gordinho e impetuoso deles, um distintivo de xerife. O homem da lei diz:

– O que te traz para cá, estranho?

Sem desfazer a fisionomia séria, o Exorcista responde:

– Charutos. Tem algum aí?

– Charutos não tenho nenhum, mas de perguntas estou cheio. De onde você;

O Exorcista sai andando. Ao ouvir um tiro, ele se vira e olha por cima do ombro para o gordinho irritado, que com a arma erguida para o céu diz:

– O que você quer com a Teresa?

Em silêncio, os dois homens se encaram.

Longos closes na feição de cada um.

Um dos parceiros do xerife masca alguma coisa.

Uma gota de suor se equilibra na sobrancelha do xerife, ora à beira da queda livre, ora prestes a deslizar pela pele macia.

O Exorcista mal se mexe. Com o close-up, conseguimos ver perfeitamente a sombra que o chapéu projeta em seu rosto, ocultando grande parte do seu rosto franzido. Ele saca o revólver e ouvimos um disparo. O cavalo de um dos homens do xerife vai ao chão, com uma ferida mortal e um relincho que reverbera pela cidadezinha.

Em choque, o xerife mal consegue conter seu próprio cavalo. Enquanto o gordinho e sua montaria se recuperam do susto, o Exorcista vai para o hotel, aproveitar os últimos momentos de luz do dia.

Na manhã seguinte, os sinos da igreja despertam o Exorcista. Da janela, ele consegue ver uma multidão amontoando-se ao redor de um velho de preto, cujos braços se movem enaltecendo, ressaltando e corroborando cada frase bem articulada que o velho fala. O Exorcista assiste em silêncio ao discurso exaltado do padre, a cujas afirmações o xerife, bovinamente, balança a cabeça em concordância. Com sede e vontade de fumar, o Exorcista vai para a parte de baixo do sobrado do hotel, onde funciona o bar.

Os aplausos da multidão viram assobios, depois gritos de ordem e, por fim, uma procissão até a igreja. Os ruídos e barulhos sacros ecoam pela cidadezinha, chegando até a casa de Teresa, cuja porta está aberta. No meio da rua, longe da igreja, mas em sua direção, a mãe carrega a filha desmaiada e magra nos braços, ninando-a para tranquilizar-se. O Exorcista lhes assiste do bar, onde toma, em pé, seu uísque.

Prestes a entrar na igreja, Luz começa a convulsionar novamente e cai no chão, sujando-se e erguendo poeira, enquanto Teresa grita. O surto diabólico está de volta, em alto e bom som, mais alto até do que os hinos recitados pelos fiéis. A voz grave e as blasfêmias constantes atraem para fora as pessoas que antes rezavam, assustadas com o pesadelo de Teresa e sua filha possuída. A menina grita, se debate e, quando está prestes a esmurrar sua mãe, o Exorcista puxa a mulher para longe do diabo.

O padre sai, sem pressa ou pânico, e não se assusta com o cenário. Pede que os fiéis voltem à igreja, onde estarão protegidos; convence Teresa a tentar levar a menina, claramente sob a ação de Satã, de volta para casa, já que poderão cuidar melhor dela por lá. Trêmula, Teresa concorda, se desvencilhando do Exorcista. Ela tenta abraçar a filha, mas o demônio está revolto demais, inquieto e inclemente.

O diabo urra contra o padre, agradecendo-o por tudo. Pelos anos de hipocrisia, pelas missas rezadas sem fé, por ter espalhado para toda a cidadezinha as agruras e vergonhas de cada fiel que com o padre se confessou. Rindo e exibindo os dentes verdes, o demônio diz:

– Hipócrita padre, meu igual, meu irmão!

O Exorcista puxa a arma, mas parece-lhe inútil ficar ali, sacudindo um revólver contra uma criatura do inferno no corpo de uma garota de seis anos.

O padre tira de seu bolso a cerâmica no formato de demônio.

A menina fica parada, os olhos esbugalhados tensos e fixos no artefato.

Com força, o padre arremessa a cerâmica no chão, partindo-a.

Por um instante, nada acontece.

No instante seguinte, também.

No outro, o demônio ataca o padre, mordendo-lhe a garganta. Os dentes verdes agora parecem presas, tão enterradas no pescoço que o fazem esguichar sangue, sufocando os gritos da vítima indefesa. Como um urso dilacerando sua caça, o demônio devora a carne do padre, até este parar de se mover. O banquete só termina quando um tiro perfura a cabeça da menina.

Certeiro, o disparo do Exorcista faz o demônio cair morto ao lado do padre. Teresa urra. Ela se atira em cima do caubói, que, impassível, apenas a segura, impedindo-a de bater nele, mas permitindo que ela se debata, que arranhe o rosto enquanto grita e chora. Arrasada, ela cai no chão, onde fica soluçando.

O Exorcista tenta acender novamente seu charuto, que se apagou na confusão, mas, mesmo riscando vários fósforos, não consegue. Desistindo, ele se agacha, tira o chapéu e fala com Teresa (completamente alheia à presença dele):

– Tinha que ser feito…

O Exorcista caminha de volta ao bar e monta no seu cavalo. Sai trotando para fora da cidade sem virar as costas por um momento, talvez para não perceber que os fiéis o olham, talvez para não ver Teresa chorar, ou, talvez, para não se dar conta de que, afinal, ele não sabe se aquilo tinha de ser feito ou não.