Thiago Nolla | 12 de fevereiro de 2014

Quando Eu Era Vivo | Crítica

Há um dogma, quase um inconsciente coletivo, que permeia as discussões sobre nosso cinema nacional: a premissa de que “não se faz cinema de gênero no Brasil”. Essa afirmação pode ser vista como uma interpretação histórica da nossa filmografia, partindo de um ponto em especifico: os anos chamados de pós-retomada – subsequentes ao sucesso de […]

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Há um dogma, quase um inconsciente coletivo, que permeia as discussões sobre nosso cinema nacional: a premissa de que “não se faz cinema de gênero no Brasil”. Essa afirmação pode ser vista como uma interpretação histórica da nossa filmografia, partindo de um ponto em especifico: os anos chamados de pós-retomada – subsequentes ao sucesso de Carlota Joaquina, Princesa do Brazil, lançado em 1995, e dito responsável pela volta do publico ao habito das telonas.

Nesse meio tempo, tivemos obras universais, regionalistas e diversos sucessos de público – estes últimos financiados pela Globo Filmes, em filmes famosos por torcer o nariz dos críticos de cinema espalhados pelo país. Os exemplares mais próximos do tal cinema de “gênero”, uma caracterização de cartilha seguida pelos colegas do produção “industrial” americana: as comédias-pastelão, os filmes de terror, os romances, os suspenses, e outras definições e variações.

Quando eu Era Vivo, de Marco Dutra, é uma espécie de resultado desse flerte com o cinema yankee; para quem já assistiu Trabalhar Cansa, o incrível trabalho de estreia de Dutra e Juliana Rojas, era possível esperar ao menos um pouco de realismo fantástico, paralelos sociais, e inventividade na construção dos personagens. Só essas credenciais já seriam o suficiente para arrastar qualquer cinéfilo cheio de empolgação e expectativa às salas de cinema.

Baseado no livro “A Arte de Produzir Efeito Sem Causa”, de Lourenço Mutarelli (que faz uma breve participação no longa), Quando Eu Era Vivo tem em seu ponto de partida a chegada de Júnior (Marat Descartes), que após separar-se da mulher, volta a morar com seu pai, Sênior (Antônio Fagundes). Ele passa a reviver momentos de seu passado, em meio a memórias de infância de situações vividas com sua mãe e irmão – e também sonhando com a nova inquilina de seu pai, Bruna (Sandy Leah).

Nesse contexto, vamos acompanhando o processo de enlouquecimento – ou elucidação e fervor religioso, por assim dizer – de Junior. Ele repete as atividades e afazeres da mãe, revê filmes em VHS (ótimos, por sinal) com os momentos e rituais realizados com ela e seu irmão; passa por um processo de possessão gradual, ou mesmo uma regressão de volta à morte/vida que tinha antes.

Mesmo com essas dualidades, o roteiro é enxuto, com encenação e direção de atores bem simples. No entrelaçar da história, a montagem de Juliana Rojas é um dos grandes atrativos – os enquadramentos longos das cenas cotidianas dão respiro a história, encaixando os acontecimentos e nos envolvendo, pacientemente, na trama. Dutra não se deixou levar por sustos não justificados, talvez na tentativa de não pecar pelo excesso de homenagens. Mas essas referências estão lá: na trilha sonora contundente, que prepara os momentos de clímax; nos enquadramentos mais manjados dos momentos sobrenaturais, e também nas interpretações do elenco. Mais especificamente, na caracterização de um deles.

Descartes compõe um Junior como um irmão distante de Jack Torrance, personagem icônico de Jack Nicholson em O Iluminado. Com ótimos momentos, refestela-se em um protagonista intrigante, que navega entre o infantil e o completamente insano. É tudo que um personagem em uma espiral de transformação tem que ser.

Fagundes, por sua vez, comprova-se um bom ator, mas sem muita economia de gestos e tiques; seu grande momento, quase uma alusão ao trabalho recente na novela Amor à Vida, é na cena final, o grande clímax, em que mostra que realmente é mais que um eterno galã de televisão.

Mas as melhores surpresas vêm de rostos desconhecidos e/ou celebridades; Gilda Nomacce repete o ótimo desempenho que teve em Trabalhar Cansa, e rouba totalmente as cenas em que aparece como a manicure Miranda; tem timing cômico e excelente expressão facial para sustentar momentos impagáveis. Tuna Dwek tem uma pequena participação, envolvendo um bem encenado momento de, digamos assim, alto teor físico.

Entretanto, talvez o grande trunfo da escalação esteja no lado celebridade: a cantora Sandy. Ela não está necessariamente boa, como reverberam em diversos sites especializados. Está bem dirigida, isso sim. E sua persona é exatamente o que o filme precisava: uma candura eterna, de personalidade boa e corrompível, dona de uma voz angelical que se encaixa perfeitamente nas predisposições musicais, por assim dizer, da história.

Como cinema, talvez possamos dizer que Quando Eu Era Vivo é um exemplar do tal “gênero”; não é um cinema-janela, com enredos extraídos de nossa realidade social e política. É um suspense, com toques de terror sobrenatural, uma direção rigorosa, e uma pitada bem econômica dos tão valiosos comparativos existenciais de Trabalhar Cansa.

Por esses motivos, Quando Eu Era Vivo merece ser visto: explora maneiras de fazer cinema com temas não comuns à nossa realidade cinematográfica atual, traz boas performances e entretém. Isso já vale a ida ao cinema.