LuizaFernandes | 16 de julho de 2013

Hanna Arendt | Crítica

Quatro anos atrás tive a oportunidade de ler As origens do totalitarismo de Hannah Arendt e foi uma experiência reveladora. O livro, um trabalho monumental sobre o sistema totalitário a partir de uma análise sólida do Stalinismo e da Alemanha Nazista, é uma obra definitiva sobre o tema e que deu a Hannah Arendt sua […]

Hannah Arendt

Quatro anos atrás tive a oportunidade de ler As origens do totalitarismo de Hannah Arendt e foi uma experiência reveladora. O livro, um trabalho monumental sobre o sistema totalitário a partir de uma análise sólida do Stalinismo e da Alemanha Nazista, é uma obra definitiva sobre o tema e que deu a Hannah Arendt sua fama internacional como filósofa política.

O filme da cineasta Margareth Von Trotta se passa 10 anos depois, entre 1961 e 1963, com Hannah Arendt já professora catedrática da prestigiosa universidade de Princeton, nos EUA, e enviada especial da revista New Yorker para cobrir o polêmico julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém.

Não se trata, portanto, de uma biografia da autora. Aliás, nesse ponto o filme padece um pouco. Ao mesmo tempo em que despreza – intencionalmente – muitos fatos interessantes sobre a vida da autora, seria possível utilizar melhor os exemplos que são citados durante o filme: seu relacionamento amoroso e intelectual com Martin Heiddeger (seu tutor acadêmico na Alemanha) e sua amizade com a escritora norte-americana Mary McCarthy sofrem bastante com uma abordagem rasa e confusa – ainda que a de Heiddeger seja essencial para o desfecho do filme. Outro ponto importante da vida da autora que não foi suficientemente explorado é a questão de sua fuga da Alemanha, a consequente prisão na França e seu exílio nos EUA.

Fora esses detalhes biográficos relevantes, o filme tem apenas outro pequeno “porém”: a falta de ritmo e a rigidez da montagem (planos em movimento que encadeiam mais planos em movimento, com aparatosos reajustes no enquadro).

O fato é que se trata de um filme intelectual. É uma abordagem “parada” e reflexiva sobre um determinado momento de nossa história que nos leva a pensar além do absurdo enfoque “tradicional” que se faz da 2ª guerra mundial e suas consequências: a figura de Hitler em um papel central e cenas chocantes de Auschwitz – da qual, Von Trotta, sabiamente evita. E é justamente nesse tom que o filme se encontra: propõe preencher uma lacuna vazia em quem assiste.

Explico.

Entrar dentro do mundo de Hannah Arendt é perceber como se davam as relações sociais em uma época em que as certezas absolutas e as convicções políticas eram a energia motriz do poder político e social. Não foi à toa que, anos antes, diversos países adotaram o regime totalitário, e tantos outros seguiram adotando, como a Espanha de Franco. O que se concebe na tela é, portanto, um mundo onde os ideais democráticos e liberais eram ainda tímidos, e que a pós-modernidade, de que tanto falamos hoje, era uma fantasia do mundo acadêmico e artístico.

É por essa sociedade moderna (aqui me refiro ao termo acadêmico) que é possível que absurdos “Estatizados” ocorram, e com naturalidade diga-se. O julgamento de Eichmann em Israel, após um sequestro do mesmo pelo serviço secreto israelita na Argentina, e onde o réu ficava em uma “jaula” de vidro, é exemplo claro dessa deturpação do real. Um discurso ideológico sobrepõe-se, excluindo a possibilidade de um debate plural no seio das instituições de poder.

O resultado, no caso do julgamento, foi uma revanche judaica que culminou com a “invenção” de uma pena de morte em um código penal que não a previa. No caso da vida pessoal de Hannah Arendt, o encontro com a fúria apaixonada de ideólogos, que passou a acusações de anti-semitismo, descrédito a sua reputação acadêmica, ameaças concretas e rompimento de vínculos pessoais antigos.

Claro, há que se levar em conta a gravidade do assunto. Falar sobre um tema tão delicado, incumbindo de responsabilidade, mesmo que mínima e absolutamente hipotética, uma população vitimada em milhões é de certa fragilidade. Mas, por outro lado, pensar que essa mesma população, no caso a judaica, previne com acintosa manifestação repressora a possibilidade de um debate plural sobre seu próprio comportamento é no mínimo uma incoerência e um desrespeito à memória da própria humanidade.

O que impressiona, no entanto, é a atualidade do tema. Hoje ainda é delicado, difícil e potencial risco de extrema coerção social qualquer debate quanto ao sionismo e suas responsabilidades no processo histórico que desencadeou o holocausto, mesmo que incontestavelmente como vítimas. Falar disso, ao menos publicamente, é enfrentar a fúria terrível de quem mistura religião, política e ciência. No entanto, para citar algo mais palpável e concreto, me aterei a um pequeno paralelo com as manifestações recentes pelas ruas do país.

Entender que as manifestações são movimentos em que a importância do discurso ideológico é inegável, e que a partir disso é possível perder o controle acerca de diversos padrões de comportamento é algo aceitável. Mas, por outro lado perceber que há um processo de naturalização desse mesmo discurso ideológico e que a partir dele há uma série de manifestações atípicas dessa população para a afirmação desse mesmo discurso é um tanto alarmante.

Quando olhamos manifestantes obrigarem outros a “baixarem” suas bandeiras partidárias, negando ou desconhecendo as relações sociais que o constituem, ou seja, o processo histórico; e absorvendo o discurso ideológico de “sem partidos” e “estão aproveitando o nosso movimento” é entender, ao mesmo tempo, que o passado explícito de violência simbólica em Hannah Arendt ainda perdura. É ver e constatar que são possíveis situações em que o totalitarismo sobrepõe e massacra a liberdade, o discurso plural e o debate público, tal qual no filme. (claro, guardada as devidas proporções).

Por isso recomendo o filme, e muito. Não se trata de uma obra prima do cinema, a personagem não é das mais cativantes, tão pouco como se conta a história e há algo de uma tentativa de mitificação que desagrada. Mas, acima de seus defeitos perceptíveis é uma ode a coragem intelectual, ao exercício do pensamento, e planta sementes promissoras para um resgate histórico de algo que anda meio esquecido.