Pedro C Pardim | 10 de abril de 2013

cine clássicos: A hora do Lobo

A hora do Lobo (Vargtimmen), Ingmar Bergman, 1968 O filme começa de maneira pouco comum. Um texto surge na tela e conta a nós, público, que veremos um filme baseado em um diário pessoal de um pintor, diário entregue por sua esposa. A seguir, surgem os créditos e é possível escutar a movimentação da equipe […]

A hora do Lobo (Vargtimmen), Ingmar Bergman, 1968

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O filme começa de maneira pouco comum. Um texto surge na tela e conta a nós, público, que veremos um filme baseado em um diário pessoal de um pintor, diário entregue por sua esposa. A seguir, surgem os créditos e é possível escutar a movimentação da equipe assim como o comando “Ação” dito por Ingmar Bergman, o diretor, ao final dos ruídos. Vemos então parte da fachada da casa do casal na ilha de Frísis, espaço em que a trama será desenvolvida, e dessa casa sai Alma Borg (interpretada por uma brilhante Liv Ullmann), que de modo direto convida a todos nós,  espectadores e também seus interlocutores, a um diálogo direto sobre sua história com Johan Borg, seu atormentado marido (o não menos incrível Max von Sydow). Os limites entre ficção e realidade negados logo nos primeiros minutos de filme.

A partir das informações oferecidas por Alma, e outras tantas sugeridas sutil e intensamente ao longo do filme, somos convidados a adentrar num universo onírico, em que a confusão – ou seria fusão?- entre realidade, sonho, inconsciente, medo e desejo irá imperar.  Quais os limites da experiência humana aqui abordada? Por que a tendência classificatória, ordenadora, daquilo que não pode ser ordenado e/ou normalizado: o diálogo entre desejos e medos, entre vontades e repulsas? No limite é a própria ideia de loucura que pode ser discutida, deslocada, ao longo da história. Na sequência a história nos convida a um tortuoso labirinto formado pelas memórias de Johan e Alma, as alucinações de ambos, a fronteira entre o “Eu” e o “Outro” (aqui numa reflexão psicanalítica).

A hora do lobo é escrito e dirigido pelo genial sueco Ingmar Bergman, o único classificado como terror, ainda que um terror não convencional, em sua extensa obra. Aqui os elementos dos filmes de horror clássicos aparecem em contextos diversos e se propõem, ao menos inicialmente, a efeitos diferentes: envolver o expectador na angústia interna das personagens, em seus horrores profundos. Lançado em 1968, o responsável por sua belíssima fotografia é Sven Nykvist, diretor de fotografia que trabalhou com Bergman em outros longas. Nesse filme em especial vemos um trabalho de Nykvist que evoca a estética expressionista alemã, com jogos de claro e escuro, a opção pela filmagem em branco e preto, a criação de uma aura de pesadelo e indistinção entre o que é próprio de um personagem ou outro.

Para além do título, a expressão a hora do lobo se refere àquele período da madrugada, por volta das três, quatro da manhã, em que supostamente mais pessoas nasceriam ou morreriam segundo o folclore escandinavo. O período de noite mais profunda, em que qualquer ruído é escutado, em que os pensamentos podem pesar ainda mais – ou poderiam também ser início de libertação? O jogo entre claro e escuro, a respiração dos atores, a crueza das situações em oposição à densidade dos conflitos internos e externos apresentados em cada cena convidam o expectador a também adentrar nessa zona tão etérea da realidade dos personagens. Aliás, a existência de realidade, ao menos como algo tão simples de definir, é um dos primeiros pilares colocados em dúvida em A hora do lobo, como dito antes.

Outra questão que surge durante a história, e especialmente numa de suas mais interessantes sequências, o jantar em “homenagem” a Johan Borg, é a possibilidade de definição do que é ou não arte. A arte entendida de maneira ampla, como atribuidora de sentido a vida, não é algo que vivemos abstratamente, que definimos de maneira vaga e ideal. A arte para quem a vive é, antes de qualquer coisa, um imperativo, uma atividade e filtro necessários. Como já foi dito mais de uma vez, a existência da arte como um escudo perante a destruição da verdade, da crueza do dia a dia. No caso de Bergman, e seus pulsantes conflitos internos e externos, essa divisa pode ser bem usada: o cinema, o teatro, a arte como caminho de entendimento e vivência.  Na sequência do jantar a discussão sobre a arte ser um ofício, mercadoria, encomenda, entre outras possibilidades, é negada por Johan Borg. Mas nãos seria essa também uma fonte permanente de angústia para o pintor Borg? Sua relação com a arte é outro ponto de dúvida, de reflexão e mesmo sofrimento em sua relação com as demais pessoas da vila e consigo mesmo.

Ingmar Bergman é conhecido por seus filmes densos e seu domínio da linguagem cinematográfica, embora sua origem profissional seja o teatro. Considerado um dos maiores cineastas da história, e mesmo apontado como o maior por muitos críticos e cinéfilos, escreveu e dirigiu obras-primas como Morangos Silvestres, Sonata de Outono, Fanny e Alexander, Persona, O sétimo selo, A hora do Lobo, dentre muitos outros. Questões existenciais de toda ordem e complexidade se fazem presentes em seus filmes. Alguns temas recorrentes são as ideias de morte e finitude, memória, a fé e o absurdo da existência, relações familiares, o conflito com o outro e a abordagem psicanalítica. Bergman faleceu em 2007, em 30 de julho, mesmo dia em que se foi outro grande cineasta, o italiano Michelangelo Antonioni. Um dia triste para a sétima arte.

 

P.S. para quem se interessar saber mais sobre a obra desse mestre do cinema, recomendo o incrível documentário A ilha de Bergman dirigido por Marie Nyreröd – embora a impressão que fique é que Bergman que se dirige no fim das contas; e a autobiografia, com direito a prefácio do seu grande fã Woody Allen, Lanterna Mágica, publicada pela Cosac Naif. Para sempre, Bergman!