Fernanda Rodrigues | 27 de dezembro de 2011

Cenário: o Interior

Tem gente que prefere assistir a um filme às cegas, sem ter a menor ideia do que vai se passar, e assim correr o risco de ser pego numa agradável surpresa, ou entrar numa furada épica. Dizem eles que assim as reações são mais verdadeiras, mais autênticas, porque não teriam o olhar “viciado” de quem […]

O Palhaço

Tem gente que prefere assistir a um filme às cegas, sem ter a menor ideia do que vai se passar, e assim correr o risco de ser pego numa agradável surpresa, ou entrar numa furada épica. Dizem eles que assim as reações são mais verdadeiras, mais autênticas, porque não teriam o olhar “viciado” de quem já leu a sinopse.

Eu não sou tão temerário. Gosto de ter pelo menos uma ideia do que vou ver, algo além do gênero do filme. Porque se eu tiver acabado de sair de uma crise depressiva não vou querer assistir a um filme do Lars Von Trier; se estiver querendo refletir profundamente não vou ver Se Eu Fosse Você 2; e se estiver no fim das minhas forças após uma semana estafante não vou ver Deus e o Diabo na Terra do Sol. Simplesmente não vou estar na vibe.

Existem alguns filmes que exigem da gente, antes de tudo, uma predisposição para vê-los. No entanto, contrariando meu costume, noutro dia fui ver O Palhaço, do Selton Mello, sem nada saber, no fim de uma semana atulhada. Achei belo, singelo, com um conflito razoável e uma narrativa cativante, fotografia aconchegante, bonita, e enquadramentos de câmeras excepcionais. Só não estava muito preparado, porém, para o ritmo da narrativa.

A história se passa em uma região indeterminada no interior do País – e essa indeterminação amplia os lugares onde podemos imaginar a história. Talvez pelo sotaque ou algum outro indício se consiga restringir essa gama de possibilidades, mas nunca determinar com exatidão. E me vi botando esse filme num lugar meio fronteiriço de Minas e Bahia, mas não importa; até porque o circo é itinerante.

Pensei, sim, no ritmo do interior. A história alterna duas velocidades opostas: a lentidão característica de uma cidade pequena em meados do século XX, predominante; e o tempo frenético da apresentação do circo, pontual. Fora deste último, até o pensamento dos personagens fica mais calmo, naquele tempo difícil de encontrar nas metrópoles de hoje. (Mas para quem está cansado, essa calma pode ter efeito sonífero e faz beirar o tédio.) Eles exigem mais que atenção, é quase uma paciência.

Na maioria dos filmes brasileiros que têm como cenário o Interior, mesmo que haja alguma alternância entre repouso e dinâmica, o que predomina é a lentidão, o marasmo, o tempo arrastado. O que primeiro brasileiro que me vem à cabeça como extremo é justamente Deus e o Diabo na Terra do Sol, do Glauber Rocha, que me pegou desprevenido com seu ritmo lento-quase-parando, e uma estética que não ajudou muito a descolar as pálpebras.

É questão de verossimilhança, imagino; o interior tem um ritmo difícil de entender pra quem não é de lá, e se a história voltar algumas décadas, então, fica mais difícil. Mesmo assim, tem que ter um esforço do espectador. É impossível, por exemplo, pensar em Abril Despedaçado, de Walter Salles, ou em Cinemas, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, com um ritmo frenético. Simplesmente não combina.

Narrado parcialmente no interior, mas ainda fazendo uso de seu ritmo, está o Central do Brasil, do Walter Salles. Este também, na viagem pelo interior do Nordeste, faz uma reverência ao tempo dos que vivem, parece até, em outra realidade.

Quem já viu A Pessoa é Para o Que Nasce, de Roberto Berliner, ou Cabra Marcado para Morrer, do Eduardo Coutinho, também deve ter ficado marcado por, além das histórias impactantes, um ritmo predominantemente lento. Esses documentários, no entanto, já me parecem menos monótonos, já que trechos de falas e entrevistas diretas dão uma dinâmica ao filme.

Outra saída para dinamizar e tornar mais comercial o filme passado no interior é misturar com outro elemento mais apelativo, como uma biografia, música ou humor. Lembrei, respectivamente, de Lula, o Filho do Brasil, de Fábio Barreto; 2 Filhos de Francisco, do diretor Breno Silveira; e Deus É Brasileiro, Cacá Diegues.

E falando em humor, não dá pra não lembrar d’O Auto da Compadecida, de Guel Arraes. Como é baseado em uma peça de teatro do brilhante Ariano Suassuna, os diálogos são precisos, velozes, sagazes, muito engraçados, bem como todo o enredo, os conflitos e os cativantes personagens. Se pensarmos que, afinal, nem toda a vida no interior é engraçada ou ágil assim, podemos até considerar que seria um recorte menos realista do interior; mas nem por isso é menos verdadeiro.